Lendo Érico Veríssimo,
deparei-me com esse trecho e fiquei pensando que tradição defenderíamos
se precisássemos lutar. Que ideias, sentimentos e sonhos nós, brasileiros do começo do século XIX, defenderíamos?
Tradição.
Às três
da tarde deixo Boston, rumo de Chicago onde chegarei amanhã às nove. Instalo-me
num confortável Pullman. O porter, um negrão de cara lustrosa e
andar paquidérmico, me vem ajudar a tirar o sobretudo e acomodar as malas,
enquanto o trem se põe em movimento. Pela janela vejo passar Boston. Praças,
jardins, perspectivas de ruas, zonas de sombra e luz. Malazarte está na minha
frente, pensativo.
- Não
compreendo muito bem esse culta da tradição – diz ele - quando o progresso tem aspectos tão interessantes e absorventes.
Veja Nova York. A lanterna de Paul Revere lá é um holofote elétrico no alto da
torre dm arranha-céu. Os tempos mudaram.
- Mas
os homens no fundo são os mesmos – respondo. – Acho que Nova York não
suportaria duas semanas de bombardeio.
- Por
que?
-
Porque foi construída por agentes que apenas quiseram prosperar materialmente
sem voltar os olhos pra trás. Porque é habitada por criaturas que vieram de
vários pontos da terra e ainda não tem raízes profundas no solo americano. Em
Boston é diferente. Penso que os habitantes desta cidade terão fibra para
aguentar reides aéreos, como Londres. Porque estão amparados numa tradição.
Quando tiverem que lutar saberão por que estão lutando. Não estarão defendendo
apenas casas, bancos, lojas, jardins. Estarão defendendo ideias, sentimentos,
sonhos. Um Empire State se constrói
com alguns milhões de dólares em alguns meses. Um campanário como o da Old North Church é feito de uma
argamassa de tempo, sofrimento, sacrifício, sonhos.
Malazarte
encolhe os ombros.
- Estas
fazendo literatura. Isso deve ser fome.
O chefe
do trem vem me pedir o bilhete.
-
Espanhol?
- Não. Brasileiro.
- Oh! O
Brasil.... lindo país. – Noutro tom: - Lá gostam de nós?
- Creio
que sim.
Ele se
inclina, paternal, botando a mão no meu ombro:
- Se
quiser se distrair, vá para o carro próximo. É um smoking car. Tem rádio e boas revistas.
- Thanks.
Sigo o
conselho. Instalo-me numa poltrona do vagão vizinho. O ar está saturado de
fumaça. Homens conversam, fumam, bebem, lêem. Apanho uma revista. O tempo
passa. Recordações de Boston, de Nova Iorque. Faces, trechos de ruas, de
melodias.... Como será Chicago? Folheio a “Times”, com atenção vaga.
Aparece
de novo o chefe de trem. Inclina-se para mim e murmura:
-
Adiante há um carro melhor. Menos fumaça. Mais bonito. Aerodinâmico. – Pisca o
olho. – Lá o senhor fica como em sua casa.
É
curioso – reflito – é justamente assim que eu me sinto nos Estados Unidos. Como
em minha casa.
Érico Veríssimo
Gato Preto em Campo de Neve. 22ª. Edição. Ed. Globo,
1996. PP.301-303
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